Era
um absurdo a discussão que seguia na Câmara Municipal de
determinada cidade do interior paulista. Os nobres vereadores
debatiam com o Secretário de Saúde a cor que deveria ser utilizada
na pintura da sede do órgão mencionado. Durante vários dias
seguiu-se um debate ferrenho que chamou a atenção da população
carente, que esperava horas, dias, semanas e até meses para uma
simples consulta com o médico local. Como poderiam debater a cor da
tinta que seria utilizada na pintura de uma pequena casa enquanto a
estrutura funcional da Secretaria da Saúde agonizava sem que os
nobres vereadores tomassem ciência do caos em que se transformara
tal entidade? Havia alguns que preferiam a cor verde, outros, a cor
azul e outros se isentavam e apenas acompanhavam as absurdas
preferências esperando a conclusão do embate.
Porém,
um dos poucos médicos que prestava serviço à população, sabendo
da ignomínia que esses senhores expunham o município, decidiu
intervir. Resolveu participar de uma convocação, vereador como era,
para ajudar a elucidar essa questão. Quando soube que a pauta da
convocação era exatamente para tratar de tal assunto, outra vez
ficou indignado. O seu tino profissional não podia admitir que seus
companheiros na Câmara Municipal perdessem tanto tempo com causas
tão infantis e que desperdiçassem o erário, se reunindo para
discussões tolas, idiotas, enganadoras e até mesmo politicas como
essa. Ao ouvir a explanação do presidente da Câmara sobre a razão
que os levaram a discutir o assunto, corou de vergonha.
Pelo
nome da cidade ser Vitória Régia, alguns dos vereadores acharam por
bem que a partir daquele ano, os prédios públicos municipais fossem
todos pintados com a cor predominantemente verde. Outros no entanto,
de partidos contrários ao do vereador que fez a proposta, os
chamados opositores do governo, preferiam a cor azul e dessa maneira,
surgiu a controversa. Aberta a sessão, o indignado médico não deu
nenhuma chance para debate e imediatamente tomou a palavra. Subiu na
pequena e modesta tribuna de onde eram feitos os discursos e expõe o
seu ponto de vista. Disse ele: “Sei que os senhores sabem que
embora eu seja membro assíduo desta casa, não considero ser a a
nossa função de somenos. Como sabem, além de exercer a função
como vereador deste município, zelando pelos interesses tanto dos
cidadãos como da própria cidade, embora vinculado a um partido
político, não legislo baseado em seus estatutos e sim em minha
própria consciência.
Médico
como sou, defendo uma estrutura de trabalho mais moderna e
aperfeiçoada para um melhor desempenho do meu serviço e melhor
qualidade de atendimento aos pacientes. Lutei e ainda estou lutando
para que a saúde, não apenas em nossa cidade, mas, de maneira geral
em todo o país, alcance índices satisfatórios mínimos de
qualidade no atendimento. Sei que verbas oriundas do governo federal
são destinadas a essa área tão carente, porém, quando chegam ao
destinatário final, grande quantia já se perdeu pelos labirintos da
corrupção, que infelizmente, já chegou em nossa cidade alcançando
médicos, empresários e políticos que colaboram para o seu
desenvolvimento. Me vejo novamente dando murros em ponta de faca. A
discussão que agora se inicia, dá-me quase a certeza de que estou
lutando em vão.
Como
é possível imaginar, e quem me dera realmente fosse apenas fruto da
minha fértil imaginação, que os nobres companheiros se reunissem
para decidirem sobre a cor de tinta a ser utilizada para pintura de
um prédio enquanto pacientes morrem a míngua em filas sem
atendimento adequado e necessário? Como dizem, de médico e de louco
todo mundo tem um pouco! Acredito que a minha cota de loucura assim
como a dos senhores, chegou ao seu ápice com essa questão. É
inadmissível tal discussão se problemas primordiais continuam ao
descaso. É inadmissível que nosso município não tenha sequer um
mamógrafo. Porquê não discutir esse assunto? O hospital está
sucateado, os equipamentos estão ultrapassados e muitos quebrados,
medicamentos, macas, cadeiras de rodas, tudo em falta e nós reunidos
para discutir cor de pintura em prédio!
Senhores,
a saúde não está uma maravilha ou cor-de-rosa para que fiquemos
discutindo banalidades, pelo contrário, a situação está escura,
sem luz no final do túnel. Diante disso, o que os senhores querem
discutir?” Tendo feito essa pergunta desceu do palanque sem querer
ouvir a resposta e, após ele, ninguém fez uso da palavra e todos
deixaram a questão com o secretário de obras e passaram a discutir
a saúde sob outra ótica, a da moralidade.