terça-feira, 18 de agosto de 2015

Rotina

Feriado prolongado. É sempre uma boa oportunidade para realizarmos aquela viagem planejada a meses. Viajar, quebrar a árdua rotina a que somos envolvidos, conhecer lugares, pessoas, se divertir. As opções são diversas, basta ter um pouco de dinheiro e paciência para enfrentar os transtornos de um trânsito caótico que logo somos recompensados pela alegria e a satisfação ao contemplarmos lugares e paisagens de cartão postal. Alguns preferem praia, outros o campo, lugares mais afastados dos grandes centros para retiros e meditações espirituais. Há os que optam por permanecer em casa junto com os familiares, receber ou visitar parentes. Também há os que preferem ficar em casa descansando ou fazendo faxina, colocando a bagunça em ordem e com isso não gastam o pouco dinheiro que possuem. Por necessidade optei pelo campo. Fiz as malas e acompanhado da esposa, por um dos filhos e um dos netos, partimos. Saímos ainda de madrugada. Era preciso sair antes do amanhecer para não ser engolidos pela rotina que se iniciaria em pouco tempo daqueles que ficariam na cidade e para poder aproveitar ao máximo todos os dias do feriado.
Minha rotina estava muito estressante. A pressão estava elevada, era preciso relaxar, mas como, se somos atordoados pelo bombardeio diário da vida e nessa guerra lutamos apenas para sobreviver? Aliás, sobreviver tem sido mais do que uma guerra e parece que estamos perdendo para nós mesmos. Sobreviver ultimamente está causando estresse em grande parte da população nos grandes centros. Estamos sendo nocauteados em pé pela rotina da vida. Então, era preciso quebrar a rotina, respirar novos ares, e limpo, sem poluição de preferência e lá fui eu com a esposa, o filho e um neto. A medida que nos afastávamos da grande cidade parecia que os problemas também iam se afastando de nós. O peso, a pressão, as urgentes necessidades diárias, tudo diminuía.
As coisas simples da vida iam surgindo em meu interior como nunca imaginei. Já ao cruzarmos por algumas pequenas cidades, era possível contemplar pela janela do carro, as casinhas ao longe, encruadas no pé dos montes e ao vermos a fumacinha de um fogão de lenha saindo pelas janelas anunciando, provavelmente, um cafezinho e um pão assado prestes a sair do fogo, o desejo de chegar ao nosso destino explodia em meu peito fazendo não somente meu pé acelerar mais o carro, mas, meu coração também acelerava. O viver simples das pessoas simples do campo me contagiava. Passamos a valorizar, mesmo sem saber, o ser do que o ter. Um bom dia, por exemplo, é dado de maneira muito diferente do que na cidade grande. As pessoas param para se cumprimentarem, anteriormente notei.
Enfim, cheguei. Ainda sobrecarregado pelo peso da correria e da pressa que trazia, logo queria ganhar tempo e resolver o que viera fazer. Mas o tempo e a pressa ali passavam com a mesma lentidão. Não nos deixaram fazer nada antes do almoço, que já estava sendo preparado por ocasião da nossa chegada. Peixes, frangos, abóboras, tomates, alfaces, laranjas, os frutos da terra e do rio, estavam ali, tudo preparado como uma dádiva divina sobre a mesa para a nossa degustação. Fui atraído e fascinado pela tranquilidade do lugar que resolvi que aquele viver, seria o meu viver. Talvez meu coração se acalmasse, o estresse diminuísse, ou quem sabe, acabasse, a pressão voltaria ao normal, o pensamento se deixaria levar pelas belas paisagens, pelo por do sol iluminando as águas do rio Tietê, era a grande oportunidade de mudar a minha rotina. E foi isso que comecei a fazer.
Depois do almoço, deitei-me em uma rede embalado pelo vento, acompanhando a alegria de uma criança que saíra de um presídio de apartamento, correndo solta, descalça atrás das galinhas, do cachorro, que esqueceu os brinquedos eletrônicos que levou e sem saber por onde ir, não parava um só instante. Apreciei um beija-flor em seu ninho, sem medo, sem susto, protegendo seu filhote, no soquete de uma lâmpada, a qual, não acendiam nem mesmo a noite para não incomodá-lo. Era possível contemplar a beleza em um final de tarde, onde o sol se pondo em um vermelho encantador por detrás da árvores frondosas e frutíferas refletia uma vermelhidão nas águas calmas do rio. Como era bom poder fotografar e acompanhar com as minhas retinas a revoada dos pássaros e seus caminhos cortando o céu azul e se perdendo na amplidão do universo. O tempo parou para mim e eu parei no tempo. Era possível ver ao longe o rebanho de vacas pastando, ouvir o som de tratores na colheita final da cana de açúcar e do arar da terra para outras plantações.
Podia se ouvir o som do silêncio que através do vento, cortava a campina, chacoalhando as folhas das árvores, anunciando o fim da tarde. As galinhas com suas proles, seguiam apressadas rumo ao galinheiro, era o entardecer de mais um dia. Essa era a rotina do campo. A minha rotina fora interrompida. Desliguei o celular, não havia sinal satisfatório, me desliguei da internet, dos e-mails, como em um passe de mágica esqueci as preocupações com a saúde, tanto minha como da esposa, os remédios pareciam não ser mais necessários. Os problemas com os filhos, que mesmo não tendo problemas nos preocupam, ficaram na cidade. As contas a pagar, se apagaram da minha mente, por alguns dias as esqueci. O sono que já em algumas noites vinha fugindo da minha presença, deixando-me rolando na cama inquieto pelas madrugadas, resultado de um viver estressante, naquele balanço de rede, se aproximou sem eu perceber. Envolvido pelo som da natureza cochilei e pude até sonhar. Sonhei envolvido com aquela rotina do campo, com os netos correndo livres sem os adultos com medo de sequestros, balas perdidas, sem a pedofilia cercando nossas crianças, sem grades ou muralhas de proteção em nossas casas para sentirmos um pouco mais seguros no meio de tanta insegurança. Sonhei com os jovens livres do assombro das drogas, da prostituição infantil, do medo de um futuro incerto e de todo tipo de imoralidade tão comum nas cidades grandes.
Foi possível sonhar com uma grande casa, com as portas fechadas apenas com uma taramela, e a noite para evitar a entrada de algum animal desatento. Sonhei com os pescadores, profissionais ou não, com a paciência de um monge, passar horas sentado na beira do rio ou em seus pequenos barcos, em tempos oportunos e permitido, pescarem o suficiente para a família e alguns para abastecer o povo da região. Como era bom ser acordado, ainda que bem antes do desejado, pelo canto estridente de um galo, bem debaixo da nossa janela que parecia já acordar as galinhas mostrando que ali quem mandava era ele. Pela manhã as vacas já em sua rotina, pareciam preparadas e aguardavam as mãos hábeis dos moradores para retirar o leite que estufavam suas tetas. O som fanhoso de um rádio tocando músicas sertanejas antigas atravessava todos os cantos da casa em um som ambiente, que mesmo fanhoso, acalmava as almas mais agitadas fazendo do momento a melhor terapia para o ser humano. O fogão de lenha soltando uma fumaça não sufocante por toda casa até pegar fogo nas madeiras secas que estalando soltavam faíscas anunciando que está pronto e esperando as panelas para o almoço. Comecei entrar em outra rotina, a da conversa descontraída debaixo das árvores, do passeio na praça com o neto, tentando reunir as forças para acompanhar seu ritmo e energia, rotina de tomar sorvete ao cair do dia, de sentar no banco da praça ouvindo os cânticos dos pássaros, de visitar as pessoas nas fazendas, no meu caso ainda de carro e saborear as deliciosas iguarias do campo.
A noite, não somos apenas iluminados pelas milhares de constelações que com facilidade no universo se observa, mas até a lua, que nessa região, não somente inspira os poetas e acende a chama do amor nos corações dos amantes, mas se destaca na imensidão negra onde parece estar sempre cheia comandando as estrelas do céu. Essa era a rotina que eu sonhava e sonhei enquanto era embalado pelo vento e despertado pelo neto que com seu embalo, as vezes me despertava do sono. Pensei que ainda sonhava, quando o despertar pelo canto do galo foi substituído pelo som do despertador de um aparelho celular. Eu novamente apressado, controlado pelo horário que avançava e pelos remédios que tinha de tomar na hora certa, me vi em uma grande avenida esperando o coletivo para ir ao trabalho. Entre empurrões e cotoveladas, mesmo sem querer, seguia minha rotina tendo de disputar um espaço com outras pessoas que seguiam na mesma direção e na mesma rotina: o trabalho.
Não tinha mais a alegria e nem a companhia do neto. Estava rodeado de adultos sisudos, sérios e carrancudos com suas expressões cansadas e preocupadas pela rotina da vida moderna. O verde do campo mudou para o cinza da cidade. A tranquilidade deu lugar a agitação e a correria de pessoas que caminhavam sem direção em busca e na luta pela sobrevivência. O canto dos pássaros deu lugar as buzinas e sirenes, o almoço tranquilo em volta da mesa deu lugar ao fast food e ao self service. O vento agora era cortado por carros em alta velocidade. Não havia mais vacas nos pastos e não vi mais o meu neto sorrindo e se divertindo correndo atrás das galinhas. O que vi foi minha esposa fazendo ligações telefônicas tentando marcar exames cardiológicos para mim. Vi inúmeras contas vencendo e que o prazo para saldá-las já havia passado e que o dinheiro não era suficiente. Notei também que o desemprego havia batido em minha porta. Não escutei e nem desejei um bom dia para vizinho.
A gente simples do campo agora estava vestida de terno e gravata. As conversas giravam em torno do cifrão. Já não estava mais sob o balanço da rede. Os solavancos dentro de um trem do metrô apertado me fez despertar e perceber que eu não estava mais na rede, sonhando com a rotina do campo e sim na minha rotina e agora era impossível sonhar...

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