quarta-feira, 12 de agosto de 2015

O homem da carrocinha

Ainda não era sete horas da manhã. O vento frio que soprava deixava meu rosto muito mais gelado do que demonstravam os termômetros. A passos largos caminhava para alcançar a escada que me separava do ponto inicial do transporte coletivo. De repente uma cena distraiu-me a atenção. Era de um rapaz forte, maltrapilho, sem camisa, acho que pelo corpo atlético não passava dos trinta anos, mas devido aos sofrimentos da vida e de todas as intempéries do tempo, sua aparência parecia ser bem mais velho. Mas ele caminhava resoluto acompanhado por dois cães sujos e magros, de pelos ralos, amarrados cada um ao lado da sua carrocinha, que a cada parada que ele fazia para descansar as mãos grossas e calejadas, os cães aproveitavam para se coçar de tanta pulgas e outros parasitas que traziam em seus corpos. Ele não se importava com isso. Tratava os cães com um afago impressionante e eles retribuíam lambendo-lhes as mãos e balançando o rabo como uma aprovação e recompensa pelo carinho recebido.
Apesar do esforço que ora fazia, resplandecia do seu ser uma pessoa feliz. Cumprimentava a todos que por ele passava. Conversava de longe com os motoristas do ponto de táxi, com os passageiros do coletivo que formavam uma fila bem pertinho dele, cantava, brigava com os cães e por algumas vezes deu longos tragos em um líquido que me deixou com a certeza de ser cachaça. Talvez residisse ai tanto calor naquele frio. Ali estava uma pessoa que parecia não se preocupar com nada. Para ele não tinha importância o valor do dólar, o preço da gasolina, do álcool, dos alimentos, se a bolsa de valores subiu ou caiu. Ele estava imune a inflação, ao preço do petróleo, aos produtos transgênicos, ao trânsito, nada aparentemente o preocupava, exceto os seus cães. Com a sua carrocinha repleta de tranqueiras, ele seguia cantando e conversando com os animais.
Parecia que precisava de muito pouco, ou quase nada, para ser feliz, se é que era feliz ninguém sabe o interior de ninguém. Era mais um entre milhões de cidadãos relegados e soltos a mercê da sorte e do destino. Era mais um entre tantos com sua carrocinha lutando para sobreviver. Era mais um homem se entregando aos braços da cachaça e sem sonhos interiores, lutando apenas com suas forças físicas na dura rotina em busca de si mesmo e da sua sobrevivência. Entre um gole e outro, ele seguia acompanhado pelos cães e sob olhares perplexos e indignados de transeuntes engravatados que assim como eu, pareciam mergulhados nos pensamentos, buscando uma resposta para aquela cena. Mas era algo notório o resplendor de felicidade que emanava do seu rosto. Não tinha olhar sisudo como alguns na fila do coletivo não tinham preocupações exteriores que com facilidade se notava nos normais. Aqueles normais e certinhos cidadãos educados que observavam aquele homem, ao virem sua alegria radiante, o estereotipavam de louco.
Sempre ouvi dizer que os loucos é que estavam certos, pois faziam o que queriam e eram eles mesmos. Mas notei pelos olhares, que o certo é não ser louco, pois o louco não está certo na concepção de certos loucos. Alguns meneavam suas cabeças em total desaprovação ao serviço a que se prestava aquele homem jovem. Os comentários iam surgindo e cada pessoa ali na fila ia dando suas interpretações e tirando conclusões precipitadas de uma situação que ninguém conhecia. Tem louco pra tudo, dizia uma mocinha. É mais um nóia, afirmava o rapaz que a acompanhava. A essa hora sem camisa, só pode estar bêbado, concluiu uma outra senhora dirigindo-me o seu olhar. Fiquei calado sem emitir nenhum comentário apenas sorri meio de soslaio e pensei em tantos, como esse, que andavam pelo mundo afora.
Duraram por alguns minutos os comentários. Culpava-se o governo, a família, a sociedade, o sistema do mundo, como se todos ali fossem isentos de qualquer culpa. Até o próprio Deus, o único que com certeza não tinha culpa alguma, recebeu sua parcela no julgamento daquelas pessoas. Não sei como Deus não vê uma coisa dessas, esbravejou uma senhora gorda ao lado. Afirmava com tanta convicção que parecia ser muito íntima do Criador conhecendo todos os seus desígnios. Falava como se Ele não existisse. O rapaz prosseguiu seu caminho cantarolando suas canções aos cães e nós ficamos ali, pasmos, com nossas interrogações e indagações sem sentido e desnecessárias, colocando sobre nossos próprios ombros uma responsabilidade tola e até mesmo culpa tão descabidas. Chegou o coletivo mas os comentários não pararam. Já dentro do ônibus podia se ouvir um palavreado sem conteúdo. E quando o coletivo seguiu que alcançou o homem rua acima, as pessoas ao avistarem teceram mais comentários. Eu me controlei e não quis entrar naquela controvérsia.
Mas um senhor que ao meu lado se sentara, o mesmo ao qual a senhora gorda dirigiu a palavra falando sobre Deus, questionou comigo, ainda que timidamente a respeito do comentário da senhora. Onde já se viu as pessoas culparem Deus por essas coisas. Antes que eu respondesse a seu comentário, ele insistiu. Deus tem coisas mais importantes do que essas para olhar. Isso é problema dos nossos governantes. Eles sim, são os culpados pela miséria do povo e não Deus, completou orgulhoso do que afirmara. Concordei com ele a respeito da responsabilidade política, e sobre Deus, dei o meu parecer. Disse-lhe em poucas palavras que Deus, apesar de não parecer para muitos preocupa-se com o homem e sem acepção. E não se alegra com essas cenas e com essas dificuldades que muitos se encontram.
Foi por essa mesma razão que um dia Ele se fêz homem e na pessoa de Jesus, seu filho, veio resgatar o homem da sua vã maneira de viver. Ele não esperava que eu lhe falasse com essa intrepidez. Olhou-me mais atenciosamente, se ajeitou em seu lugar, e eu continuei falando. Mostrei-lhe que Deus, realmente, conforme ele mesmo dissera, tem coisas muito mais importantes em que se preocupar e uma delas, talvez a mais importante, seja o seu reino aqui na terra onde habita a justiça. E nós que acreditamos em Deus, somos cidadãos do reino dos céus aqui na terra. Então cabia a nós fazermos a justiça que procede de Deus. Eu mudando minhas atitudes, posso mudar o mundo, falei. Não será necessário ação política ou qualquer fator exterior. Depende de nós. Com respeito àquela cena que presenciamos, somos realmente incapazes de fazer alguma coisa.
Mas quando reconhecemos nossa total incapacidade, precisamos imediatamente, reconhecer a capacidade de Deus. Insinuei que as pessoas não são capazes nem de deixar de fumar, que era o caso daquela senhora, como poderiam depositar tamanha questão sobre os governantes e políticos e até mesmo sobre os ombros de Deus? ou seja, se vivermos pela vida de Deus em nós, muitos problemas sérios da humanidade teriam solução imediata. Talvez naquele momento ele não entendesse nada do que eu falei, e muitos ao lerem essas linhas também não entendam. Mas o fato é que Deus quer viver por intermédio de cada um de nós. Somente assim, com a vida Dele crescendo em nós, essas cenas e outras coisas que achamos injustas, um dia terão fim. Porque Deus é justiça, é amor, é paz, é vida, é misericórdia, é tudo o que precisamos. E assim seguimos cada um o seu destino naquele dia. Mas espero que um dia o nosso destino seja o próprio Deus.

Nessa ocasião agradeci muito mais a Deus por um dia ter me encontrado, e mudado o meu destino e a história da minha vida, e em uma oração silenciosa, pedi-Lhe que olhasse para todos os homens, inclusive aqueles com as suas carrocinhas...

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