Pai,
hoje estou completando quatorze anos. Já me sinto um homem-feito.
Sei que se você estivesse aqui, diria que ainda falta muito para ser
um homem. E eu teria que concordar com você pai. Se você estivesse
sempre presente comigo como o meu parâmetro de vida, eu perceberia
que ainda sou um adolescente e que tenho muita coisa para aprender.
Por isso pai, ouso em dizer que já sou homem. A vida me ensinou
muitas coisas. É claro que eu queria voar, ser livre como um
pássaro, poder sentir o vento no rosto, apreciar as coisas belas da
vida com você junto a mim. Coisas da juventude pai.
Sabe
pai, hoje eu senti saudades de você, mas não consigo me lembrar de
você quando eu era uma criança. Procurei em minha memória, cenas
do nosso passado em que eu pudesse me regozijar mesmo que hoje, ainda
sem você. Como eu gostaria de lembrar para poder sorrir. Lembrar de
você sentado no chão da sala, fazendo bolhas de sabão, e eu
correndo atrás delas, inocente e feliz para estourá-las. Queria
lembrar do nosso futebol na sala e mamãe aos gritos pedindo para
parar. Coisas de uma família normal que eu via apenas nas casas dos
meus amigos. Enquanto eles sorriam, eu por dentro, chorava esperando
você para fazermos as mesmas coisas.
Pai,
não consigo lembrar de você ensinando-me a escovar os dentes. Não
me lembro de você ensinando-me a ler e escrever. Muito menos me
recordo de você, comigo sentado em seu pescoço, caminhando pelas
praças e parques da cidade. Pai, eu queria lembrar de você,
brincando comigo de carrinho, deitado no chão, imitando com a boca o
som de cada carro. Queria me lembrar de você correndo atrás de mim,
segurando a minha bicicleta para eu não cair enquanto ensaiava as
primeiras pedaladas.
Queria
me lembrar das tardes quentes de verão, dos banhos de chuva que nos
pegava de surpresa, do sorvete de palito derretendo entre os meus
dedos, e eu todo lambuzado te oferecendo um pedaço. Pai, não me
lembro de me esconder atrás da cortina e você fingir que não me
achava. Não vejo você em minhas fotos, nem na minha memória, nas
festas dos meus aniversários cantando parabéns comigo. Como
gostaria de lembrar dos seus braços ao me jogar para cima e me
sustentando no ar, deles me levando para cama, do seu abraço, do seu
beijo de carinho de boa noite.
Como
queria ter dado o seu presente no dia dos pais, mesmo que quando
criança eu não soubesse verdadeiramente o sentido desse dia. Me
lembro de algumas vezes em que você me buscou na escola. Como eu
gostava de falar para os meus amigos, todo orgulhoso, esse é o meu
pai!. Pena que foram tão poucas vezes. Mas a vida é assim mesmo
você sempre me dizia. Por isso de muitas coisas eu queria me lembrar
mas não lembro, elas não existiram. De outras eu queria esquecer,
mas não consigo, elas marcaram demais minha vida e o meu coração e
acredito que foi pra sempre.
Nesse
momento estou sozinho. A festa acabou. Os amigos foram embora e eu
fiquei sozinho apenas com a mamãe e meus irmãos e com você em
nossos pensamentos. Parece que todos eles também sentem, de um modo
ou de outro, a sua ausência, embora, assim como eu, nunca
demonstraram. Talvez para que nenhum sofra mais do que precisa.
Estamos, mesmo sem palavras, tentando encorajar um ao outro a
prosseguir confiantes aguardando a sua volta. Estamos contando os
dias do seu regresso para juntos recuperarmos os dias que ficaram na
minha imaginação. Eu não queria demonstrar, mas é muito fácil
perceber a falta que você nos faz.
Mas
sabe papai, me permita assim chamá-lo, preciso acostumar com a nossa
intimidade, eu cresci. Os sofrimentos que enfrentei na vida sem você
me fizeram crescer. Por essa razão, hoje eu te entendo. Eu não tive
sua presença, mas sempre tive sua pessoa. Sua pessoa mesmo distante
era algo superimportante para mim. Seu caráter irrepreensível, suas
atitudes engraçadas que muitas vezes me surpreendia quando você
voltava a ser criança comigo. Lembro-me certa vez de irmos ao parque
empinar pipa e até hoje ainda sorrio sozinho daquelas nossas poucas
aventuras. Tudo isso são lampejos que passam em minha mente dos seus
dias que saia para nos visitar.
Foram
poucas vezes que me marcaram muito. Espero que você compreenda que
tudo isso é uma injustiça que você está sofrendo. Sabe papai,
digo tudo isso, não para te culpar e condenar. Não quero que você
fique pensando algo negativo com relação a sua família. Estamos
unidos, cada vez mais confiantes e aguardando a sua volta. Sei que o
destino não sorriu para você também mas para te dizer que hoje
aprendi viver contente em toda e qualquer situação. Compreendo a
angústia que você tem passado nesse lugar, mas tudo o que fez foi
para nos defender, nós só temos que te agradecer.
Sempre
esperamos a justiça, mas a dos homens é muito falha, mas você a
cumpriu, mesmo sendo ela injusta consigo. Mesmo que sinta-se culpado
você não é. Qualquer homem faria o mesmo para defender sua família
de assalto, ainda mais, sendo dentro de sua própria casa. E afinal o
assaltante não morreu, isso pesa a seu favor. Sei que teremos outro
problema para encarar. O fato de termos que conviver com um
ex-presidiário, o que para nós, será uma alegria. Queremos que
você jamais se preocupe com isso. A indenização um dia sairá e a
justiça se fará.
Pai,
mesmo estando aqui, cada dia, sentimo-nos preso com você. E a nossa
prisão parece ser a pior do mundo, que é a sua falta. Mas o dia se
aproxima e aqueles dias de trevas, em breve a luz da aurora brilhará
até ser dia perfeito para podermos, embora um pouco tarde,
refazermos a nossa caminhada. Espero ansioso por isso. Já estou
traçando nossos caminhos de volta à liberdade. Com os meus quatorze
anos, e me sentindo um homem pelos golpes que a vida me deu, aguardo
a sua libertação...
Obs:
Isso
é uma ficção, mas se tiver alguma relação com a realidade,
não terá sido mera coincidência.
não terá sido mera coincidência.
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