quinta-feira, 13 de agosto de 2015

De filho para o pai

Pai, hoje estou completando quatorze anos. Já me sinto um homem-feito. Sei que se você estivesse aqui, diria que ainda falta muito para ser um homem. E eu teria que concordar com você pai. Se você estivesse sempre presente comigo como o meu parâmetro de vida, eu perceberia que ainda sou um adolescente e que tenho muita coisa para aprender. Por isso pai, ouso em dizer que já sou homem. A vida me ensinou muitas coisas. É claro que eu queria voar, ser livre como um pássaro, poder sentir o vento no rosto, apreciar as coisas belas da vida com você junto a mim. Coisas da juventude pai.
Sabe pai, hoje eu senti saudades de você, mas não consigo me lembrar de você quando eu era uma criança. Procurei em minha memória, cenas do nosso passado em que eu pudesse me regozijar mesmo que hoje, ainda sem você. Como eu gostaria de lembrar para poder sorrir. Lembrar de você sentado no chão da sala, fazendo bolhas de sabão, e eu correndo atrás delas, inocente e feliz para estourá-las. Queria lembrar do nosso futebol na sala e mamãe aos gritos pedindo para parar. Coisas de uma família normal que eu via apenas nas casas dos meus amigos. Enquanto eles sorriam, eu por dentro, chorava esperando você para fazermos as mesmas coisas.
Pai, não consigo lembrar de você ensinando-me a escovar os dentes. Não me lembro de você ensinando-me a ler e escrever. Muito menos me recordo de você, comigo sentado em seu pescoço, caminhando pelas praças e parques da cidade. Pai, eu queria lembrar de você, brincando comigo de carrinho, deitado no chão, imitando com a boca o som de cada carro. Queria me lembrar de você correndo atrás de mim, segurando a minha bicicleta para eu não cair enquanto ensaiava as primeiras pedaladas.
Queria me lembrar das tardes quentes de verão, dos banhos de chuva que nos pegava de surpresa, do sorvete de palito derretendo entre os meus dedos, e eu todo lambuzado te oferecendo um pedaço. Pai, não me lembro de me esconder atrás da cortina e você fingir que não me achava. Não vejo você em minhas fotos, nem na minha memória, nas festas dos meus aniversários cantando parabéns comigo. Como gostaria de lembrar dos seus braços ao me jogar para cima e me sustentando no ar, deles me levando para cama, do seu abraço, do seu beijo de carinho de boa noite.
Como queria ter dado o seu presente no dia dos pais, mesmo que quando criança eu não soubesse verdadeiramente o sentido desse dia. Me lembro de algumas vezes em que você me buscou na escola. Como eu gostava de falar para os meus amigos, todo orgulhoso, esse é o meu pai!. Pena que foram tão poucas vezes. Mas a vida é assim mesmo você sempre me dizia. Por isso de muitas coisas eu queria me lembrar mas não lembro, elas não existiram. De outras eu queria esquecer, mas não consigo, elas marcaram demais minha vida e o meu coração e acredito que foi pra sempre.
Nesse momento estou sozinho. A festa acabou. Os amigos foram embora e eu fiquei sozinho apenas com a mamãe e meus irmãos e com você em nossos pensamentos. Parece que todos eles também sentem, de um modo ou de outro, a sua ausência, embora, assim como eu, nunca demonstraram. Talvez para que nenhum sofra mais do que precisa. Estamos, mesmo sem palavras, tentando encorajar um ao outro a prosseguir confiantes aguardando a sua volta. Estamos contando os dias do seu regresso para juntos recuperarmos os dias que ficaram na minha imaginação. Eu não queria demonstrar, mas é muito fácil perceber a falta que você nos faz.
Mas sabe papai, me permita assim chamá-lo, preciso acostumar com a nossa intimidade, eu cresci. Os sofrimentos que enfrentei na vida sem você me fizeram crescer. Por essa razão, hoje eu te entendo. Eu não tive sua presença, mas sempre tive sua pessoa. Sua pessoa mesmo distante era algo superimportante para mim. Seu caráter irrepreensível, suas atitudes engraçadas que muitas vezes me surpreendia quando você voltava a ser criança comigo. Lembro-me certa vez de irmos ao parque empinar pipa e até hoje ainda sorrio sozinho daquelas nossas poucas aventuras. Tudo isso são lampejos que passam em minha mente dos seus dias que saia para nos visitar.
Foram poucas vezes que me marcaram muito. Espero que você compreenda que tudo isso é uma injustiça que você está sofrendo. Sabe papai, digo tudo isso, não para te culpar e condenar. Não quero que você fique pensando algo negativo com relação a sua família. Estamos unidos, cada vez mais confiantes e aguardando a sua volta. Sei que o destino não sorriu para você também mas para te dizer que hoje aprendi viver contente em toda e qualquer situação. Compreendo a angústia que você tem passado nesse lugar, mas tudo o que fez foi para nos defender, nós só temos que te agradecer.
Sempre esperamos a justiça, mas a dos homens é muito falha, mas você a cumpriu, mesmo sendo ela injusta consigo. Mesmo que sinta-se culpado você não é. Qualquer homem faria o mesmo para defender sua família de assalto, ainda mais, sendo dentro de sua própria casa. E afinal o assaltante não morreu, isso pesa a seu favor. Sei que teremos outro problema para encarar. O fato de termos que conviver com um ex-presidiário, o que para nós, será uma alegria. Queremos que você jamais se preocupe com isso. A indenização um dia sairá e a justiça se fará.
Pai, mesmo estando aqui, cada dia, sentimo-nos preso com você. E a nossa prisão parece ser a pior do mundo, que é a sua falta. Mas o dia se aproxima e aqueles dias de trevas, em breve a luz da aurora brilhará até ser dia perfeito para podermos, embora um pouco tarde, refazermos a nossa caminhada. Espero ansioso por isso. Já estou traçando nossos caminhos de volta à liberdade. Com os meus quatorze anos, e me sentindo um homem pelos golpes que a vida me deu, aguardo a sua libertação...




Obs: Isso é uma ficção, mas se tiver alguma relação com a realidade,
não terá sido mera coincidência.


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